Júlio Cortázar
O homem de terno saiu pela janela
Em solstícios ares avoados
Livre das amarras e das ambições que nos prendem à terra
Como um pássaro ou uma estrela
Naquele dia claro em que todos de tedio feneciam
Ele saltou da janela
De forma súbita e inconseqüente foi-se pelo nada
Passando por sob as cabeças das pessoas
tranquilamente seguro
rumo ao intangível
à singularidade
do cosmo
Acima de tudo e alheio a todos
No céu branco, azul, amarelo, vermelho, cinza
Como um foguete numa prodigiosa fulgurância
Explorando o espaço e a natureza da vida abstrata
Rompendo explicitamente com os enigmas inimagináveis
Buscando o impensável e o imprevisto
Com seus braços de seda e paz
Recusando o peso de todas as ações gravitacionais
Livre dos impasses dos limites do corpo e da mente
Com graça e brilho
Fendeu-se em todas as inércias mentais
Apropriando-se do infinito e tomando para si todo o azul
E o branco, o vermelho, o amarelo e todos os espectros da noite
E quando já bem cansado de si e com fome de outros
Ele seguiu rumo ao sul, entre garças, mergulhões e andorinhas
Tomando a linha do horizonte, em busca das grandes germinações
Procurando no início da refração do arco-íris
As gotas de orvalho de algum reino encantado
Lá onde a luz do sol é mais crepuscular e estende-se por todo horizonte
Entre vales, montanhas e planícies
Reinventando amanheceres com sobras do momento instante
E as miragens pintam sonhos de uma aquarela viva
Numa infinitude de cores num universo que está em eterno desdobramento
Pois há algo mais além de tudo
Mais além... há algo muito mais
Além há... tudo mais!
foto "Saut dans le vide" Yves Klein
fundo musical "Paganini- 24 Caprices, Op. 1"