Aniversário da Vó Déia - 82 anos

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domingo, 24 de março de 2013

MULHER AFEGÃ

                   “se não houver frutos, valeu a beleza das flores;
                    se não houver flores, valeu a sombra das folhas;
                    se não houver folhas, valeu a intenção da semente.”
                                                                                             Henfil

Mulher afegã, de hijab e rosto à mostra, não se iluda
A vida em seu país mísero ainda é a pior que existe
Os casamentos arranjados são o único amor que persiste
Meninas são vendidas como mulas por suas famílias mudas

Muitas são compradas como escravas para prostituição
Ai daquelas que resistem ou denunciam a encilhada
São espancadas violentadas apedrejadas mutiladas
A pressão social trava qualquer acesso à educação

Assim como a menina Malala exigindo o direito ao estudo
Foi trespassada por bala na testa por seu diário contando tudo
Bibi Aisha teve o nariz e as orelhas por seu marido decepadas
Tentando fugir da violência bárbara de uma união forçada

Gul Meena vive hoje marcada pelas cicatrizes do machado
Desferido por seu irmão, em desonra da sua fuga com o namorado
Existem tantas outras como Nilofar que fugiu da faca e da ânsia
Dos pais, irmãos e vizinhos, por negar seus votos de infância

Lutai mulheres do mundo! A violência bate à vossa porta
Por toda parte crianças são maltratadas, escravizadas e mortas
Apesar da audácia dessas meninas em terras tão desoladas
Ainda estão longe as amarras de suas almas por séculos aprisionadas

(O mundo só terá salvação quando as mulheres assumirem esse bodeguim
E governarem cada país, cada cidade e cada vila com olhar materno
Aquele olhar de mãe que protege e estimula os filhos aos desafios externos
Para que a criança seja apenas criança, o saber nosso meio e o amor o nosso fim)

sábado, 2 de março de 2013

O MENINO EM SEU TRAJE

                        (Baseado em fatos reais de um 
                           aluno em uma Escola Estadual
                           da cidade de São Paulo - 
                         Um estupro no meio da vida, 
                           um menino no meio do nada)

Vai o pequeno menino em seu traje,
um ser formado numa pequena torre de areia,
um recém-nascido perdido
condenado antes de nascer
à sombra eterna que cobre sua catástrofe,
“nascido de pai incerto e mãe violentada”.
É o vestígio e elo de uma noite bestial,
despreparado para o grande drama de sua vida
que ele, inocentemente, nem sabia o que estava por vir.

Samira tão bela e jovem
tinha apenas quatorze anos quando os homens 
do mal tocaram sua agonia.
Depois de devorarem sua rosa, largaram seu corpo desnudo
em carne e osso no matagal de suas lamentações,
coberto de lama e sangue,
desvestido de sua branca castidade.

Ela, numa ingenuidade de criança,
guardou solitária a dor daquela sequela.
Até que inesperadamente veio o menino
num torpe vendaval escuro,
desarmando qualquer ginete ou pílula citotec,
amaciando o áspero rócio.
Ninguém entendeu em Samira sua espada silenciosa.
O manto genital protegeu o menino do fulgor da praça ruidosa
que queriam condená-lo à morte antecipada,
à sombra eterna da bomba catalíptica.
Assim ele foi nascendo e crescendo
rejeitado pela vida, abençoado pela mãe
pois em dias de morte a vida é uma benção -
há sempre uma luz pela fresta de uma nova porta.

E o homem que Samira arrumou para amar
mirava o menino implacável.
Não entendia, na inteligência, uma razão
para aquela prolongada agonia.
Rolavam pedras em ruídos incessantes em seu pensamento,
uma geometria de corno em largos desnudos.
Com uma máscara ele ajudou Samira a criar seu menino,
sem defender, sem conquistar, totalmente cego.
Ele ficou imóvel como um prato de restos sujos
vendo aquela vida áspera sendo pisoteada,
a cabeça submergida no esterco de sua existência,
e assim ele entregou o menino aos mercadores de sangue.
Mergulharam-no nos porões do crime e das drogas,
deixaram-no perdido na cidade abandonada,
faminto, no caminho dos descaminhos,
coberto pela escuridão, aprendendo a viver no vento negro.

Mas Samira não desistiu e foi a sua procura
por rios, pontes, becos, buracos escusos.
Finalmente encontrou-o numa boca,
preso às garras negras dos traficantes de almas.
E o tirou daquele inferno,
devolvendo-lhe aos livros, ao alfabeto da vida.
Envolvendo-o em coração e pele,
educou-o da cabeça aos pés,
como uma longa flecha seguida por um vento dirigido,
ensinou-lhe o caminho da vitória,
alimentando-lhe de amor e sabedoria.

E o menino virou homem,
limpou todo sangue deixado pelo caminho,
trabalhou todos os preconceitos visíveis e invisíveis,
desenozou o fio espiral do seu passado,
disciplinou o vento furação que insistia em quedá-lo ao chão.
Fez-se fibra dos ossos e da tripa
e dos olhos, em cristal transparente, se mostrava e observava.
E então ele se fez professor,
abraçando para si a verdade dos oprimidos,
e foi pelo mundo ensinando a velha e nova dignidade,
aquilo que todos os homens tanto procuram e não acham,
e se perdem, nas mil e uma seduções das prevacariações da vida.
E aqueles olhos de menino que tanto arderam em morte,
hoje, salpicavam, espalhando orvalho e pétalas de amor,
pois em dias de morte a vida sempre é uma benção.